quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

AUTOBIOGRAFIA

QUE POETA É ESTE?

(Affonso Romano de Sant’Anna)
        

Autobiografia:
         -o que vi?
         -o que vivi?
         -ou o que escrevivi?
         Autobiografia: reinvenção autorizada.
         Então lhes digo: outro dia um jornal extraiu de uma conferência minha essas frases: “Vou botar no meu curriculum: - eu vi os Beatles cantarem em Los Angeles e Michel Foucault jantou lá em casa”.  Se o jornal, nossa imagem exterior, destacou isto, é  que isto é mais importante que algumas dezenas de livros escritos. Então, nessa linha, acrescento outras coisas insólitas: eu vi o comunismo acabar: estava em Moscou em agosto de 1991. Ali  ao lado do Kremlin, vi os tanques passando, e como   latino-americano ironizei: “ -Será um golpe de estado?”. Era.   Mais do que isto: era o fim do comunismo, o fim do império soviético  Com Marina, fui ao hotel, calçamos tênis, pegamos uma máquina fotográfica,  e assim larguei o encontro internacional de diretores de bibliotecas nacionais,  e passamos uma semana nas ruas em meio às barricadas  e dentro do próprio Kremlin. Sim, dentro do próprio Kremlin, pois estava programada uma recepção com Gorbatchov que,  preso na Geórgia, não pôde comparecer. Assim, entramos no palácio comboiado por tanques e comemos sanduíches, caviar e refrescos olhando entre as cúpulas e torres mais um dia que se punha sobre a história.
        
         Uma frase  de Randall Jarrel lida na adolescência, até hoje passeia na  minha cabeça: “ amanhã de manhã algum poeta pode, como Byron, acordar famoso -por ter escrito uma novela ou matado sua esposa- não por ter escrito um poema”. Jovem poeta, coloqueia-a naquele ensaio de 1962- “O desemprego do poeta” onde considerava a figura do poeta ontem-e-hoje procurando saídas para minha/nossa aporia.
         Então, vos digo a vós e a mim: minha vida se resume em reachar o emprego da poesia, o (im)possível ponto de intersecção entre o Eu  e o Mundo através da linguagem. O relato desse  exitoso fracasso está no titulo que reuniu seis livros: “ A poesia possível”(1987).
          Sujeito das causas impossíveis, o poeta tem algo a ver com  o que Robert  Desnos dizia: “ são insolúveis, são insolúveis todas as questões que tenho que solucionar”.
Foi isso que, piamente eu  fazia  desde  a adolescência,  quando escolhido, entre seis filhos, para ser  “ministro de Deus” ia pregando o Evangelho nas esquinas de Juiz de Fora e da Zona da Mata, tentando salvar o mundo.  “Arrependei-vos ó raça de víboras!”. 
Foi isto que estudante, em torno de 1960, nos governos de JK, Jânio e Jango e  nas agitações da União Nacional de Estudantes, utopicamente, fazia com os parceiros do Centro Popular de Cultura: nossa revolução socialista ia salvar o mundo. Éramos  rebeldes com causa, diferentes  de James Dean “Rebeldes sem causa” . Com causa ou sem causa. com a calça jeans.
Mas foi isto que com os grupos de vanguarda, tolamente  repetia: “sem forma revolucionária não há arte revolucionaria”. Que bobagem, Maiakovsky! Por essas e por outras é que curei-me   do messianismo seja  na religião,  seja na política, seja nas artes; e por isto que recentemente publiquei “Que fazer de Ezra Pound” e “Desconstruir Duchamp”.
É isso: um dia a gente sai para conhecer o mundo. Em 1965 deixo  o barroco de Minas para viver na pós-moderna Califórnia.
“Meninos, eu vi”- como diria Gonçalves Dias. O Brasil saindo do progresso iluminista dos anos 50 para a Idade Média da ditadura militar, e aquele inocente mineiro em meio aos hippies de São Francisco, nos “ love in”, nas marchas contra a guerra do Vietname ( “ make love not war”), experimentando a desrepressão erótica, política  e estética.
Vou lhes fazer outra confissão: vou botar também em meu curriculum: salvei a vida de muitos jovens americanos que estavam condenados a morrer no Vietname. Como? Assim: o estudante vinha e dizia:- Professor, se eu tirar menos de sete vão me mandar para a guerra. Claro, eu ajustava a nota. Não ia fazer o sangue  escorrer no quadro negro da história da minha sala..
Desse tempo, poderia botar mais uma coisa no meu curriculum: um dia já bati papo com Gregory Peck. Mas depois de dois anos de fausto californiano,  disse ao chairman do Department of Spanish and Portuguese : “Estou voltando para o Brasil”. E ele com pena daquele jovem que jogava fora uma carreira acadêmica nos States: “Mas você vai chegar lá e vai ter um sargento no lugar do reitor, vão te prender...”  Voltei. Sem nenhum  heroísmo. Atavicamente. Fome de raízes.
E achando, renitentemente, que a poesia tinha alguma coisa a ver com a história, voltei ao Brasil, e fui dirigir o departamento de Letras da  PUC-Rio. Ali, além de trazer Foucault e promover vários encontros nacionais de escritores durante  e contra a ditadura, ocorrreu a  Expoesia- 600 poetas em delírio criativo.  O SNI- Serviço Nacional de Informações registrou: foi a ação mais subversiva da cultura no ano. O mérito é do signo áries. Com este signo escreverei. E me derrotarei, daí- “A grande fala do índio guarani perdido na história e outras derrotas”. Enquanto isto, via minha geração se dispersando: “ um  terço se exilou, um terço se fuzilou, um terço desesperou/ e nessa missa enganosa/ houve sangue e desamor”., 
Ir e vir. Dar aulas  em Koln: o impacto daquela monstruosamente bela catedral e o longo poema daí surgido. Ir e vir: Aix-en-Provence, Texas, Paris, Madrid, Aahrus, Frankfurt, Marrocos, Pequin, Quebec, Dublin, Bogotá, Egito, Grécia, Israel, Moçambique, Nova Delhi, Portugal,Turquia, Índia, Coréia, enfim, o “ mundo é grande, tu sabes como o mundo é grande”- diz Drummond. Mas  com Eça e Pedro Nava , devo confessar, sou apenas um pobre homem dos caminhos das Gerais.
Então, lhe digo, meu caro Manuel Bandeira: eu fui à Pasárgada. Que em mim também virou poema. “Foi preciso que um poeta brasileiro te sonhasse/ e outro aqui viesse para que em ti- Pasárgada, os extremos se encontrassem”. Desembarquei no Irã.    Mas onde o poeta construíra  sua utopia, só vi ruínas. O encontro com a história tem sido uma sucessão de ruínas. Fui e vi nas ruínas de Ciro, Xerxes e Atarxexes  assim como  vi as ruínas também do século XX ali no Wold Trade Center.
-Uma definição (im)possível de poesia?
-Há algo sobre isto   nos títulos  dos meus livros mais recentes: “ Textamentos” e “Vestígios”. Todo escrito é um textamento e, na melhor das hipóteses, só deixamos vestígios
Mas acho que vou mesmo refazer o meu curriculum. Em vez de dizer dirigi por seis anos  Biblioteca Nacional(1991-1996) e foi uma experiência preciosa criar o Sistema Nacional de Bibliotecas, o Proler, exportar literatura brasileira, modernizar a instituição, em vez de dizer escrevi  tantos livros de crônicas, de poemas, de ensaios,  acho que vou assinalar simplesmente: fui à Toscana em lua de mel para comemorar 25 anos de casamento,  e  no castelo de  Gargonza pernoitei no mesmo quarto em que Dante se refugiou quando fugia dos gibelinos.
E refazendo minha vida, vou meter no meio das obras imponderáveis: estive ali na Dinamarca no castelo onde Hamlet perambulava. Olhei-o, examinei-o e o  meu pasmo só aumentava, enquanto com Murilo Mendes corrigia o infausto príncipe. “ A questão não é ‘ser ou não ser’, mas ser e não ser.”

Mas o que eu queria mesmo era ser poeta-menestrel-cantor. Aí, sim recomporia a unidade órfica perdida, quando poesia era corpo, voz, som  e verbo. Bordejei essa vivência cantando no “Madrigal Renascentista” sob a Regência de Isaac Karabchewsky.   Cantei “ The truth is march’in on” para Eisenhower no Palácio Alvorada no tempo de Juscelino. Mas coisa   finíssima foi desfilar na Comissão de Frente da Mangueira no carnaval de 1987, ao lado de velhos sambistas, em homenagem a Drummond. Poesia, povo, música: essas coisas me perseguem.
Para quem iniciou-se sob o signo do “ desemprego do poeta”, a experiência poética durante a ditadura de 1964-1984 foi pedagógica. De repente, o “Jornal do Brasil “ publica numa página inteira, fora da seção literária,  o longo poema “Que pais é este?”(1980).   De repente, nas praias, nos bares, nos clubes, sindicatos, escolas, igrejas, o poema lido e reproduzido aos milhares. O reemprego do poeta e da poesia. Fim do exílio. E a experiência se repetindo uma   dúzia de vezes e sempre a mesma constatação: feita com rigor formal, falando de coisas que interessem a todos, superado o narcisismo e servida no meio de comunicação adequado a poesia tem, como sempre, mais eficácia que a prosa. Daí a pouco a experiência se ampliaria e   faria poemas também para a televisão.
João Cabral disse, em 1945, que o problema dos poetas em nosso tempo é que  ignoram os meios de comunicação ao seu alcance? Pois bem, ele os ignorou.
 Pelo  menos, tentei: a poesia possível.

Nenhum comentário:

Postar um comentário