sábado, 14 de setembro de 2019

Funeral Irlandês

Nesta semana, foi a primeira vez em que fui a um funeral aqui na Irlanda. Era de um menino de sete anos, que lutou por cerca de dois contra um câncer cerebral, e não resistiu após brava batalha. Todos vestiam roupas especiais na ocasião, após cerca de três dias do falecimento. Foi o tempo necessário para organizar tudo, e fazer daquela despedida um momento respeitável. 

Nada de velório de 24 horas, como no Brasil, nada de roupas comuns do dia a dia. Era um ritual importante.Evidentemente, as pessoas próximas a mim que desencarnaram vieram à mente, e em conjunto, as memórias de seus enterros e as experiências daqueles momentos. Um funeral irlandês é um ritual complexo, com momentos certos de entrada, saída, cumprimentos, até lágrimas e risos. 

Lembrei do velório de vovó, pessoas entrando e saindo, estranhos espiando o caixão para ver se “conheciam o morto”, além de que ríamos na porta da capela, rememorando as bravatas dela, de sua vida livre e cheia de narrativas. Aqui, fomos orientados pela fala sisuda de um padre, com poucas interferências dos familiares, a ritualística católica era seguida.Mas o que mais me comoveu durante a missa foi ver como as crianças estavam presentes, o que é incomum no Brasil. 

Não digo apenas enquanto figuras compondo aquele espaço de luto, mas efetivamente enlutadas. Choravam copiosamente, seus rostos naturalmente pálidos e ruivos tornavam-se rubros, úmidos, deformados pela dor.O cachorro estava presente, também. Curiosamente, ele latia algumas vezes, em momentos de silêncio dos humanos. Sua presença foi demasiado difícil para mim, pois a relação entre uma criança e o seu animal é uma das coisas mais puras e belas de se ver. E o bicho, ali, compartilhava não apenas do luto, mas da memória do que foi vivido pelo menino, o rompimento de uma história, de uma narrativa-vida.

Ao final, quando o caixão era levado de volta para o carro, este que o levaria posteriormente ao crematório, todos paramos em prece, do lado de fora da igreja. Os pais, visivelmente consternados, choravam ao ver tal cena. Porém, atrás deles, através de uma parede de vidro que dava para a loja da igreja, havia uma menina pequena, de no máximo três anos, que estava em pé, sozinha, apoiada pelo lado de dentro, no vidro. Ela olhava para os pais do menino e sorria tanto, a ponto de ficar vermelha, de inclinar a cabecinha para trás. Os pais do garoto, de costas, nem notaram, lógico.Mas eu vi ali a beleza de uma criança que, em sua total falta de linguagem, conseguia se comunicar com os anjos. 

Ela via algo que nenhum de nós era capaz de ver, e sorria, alegremente. Ela sabia que aquele momento era especial, e havia seres bons, que traziam paz, acalento e proteção.Como todas as minhas experiências na Irlanda, eu estava ansioso - além de triste e enlutado, neste caso -  por não saber como seria, culturalmente, o ritual. E mais uma vez, fui pego desprevenido na Ilha da Esmeralda, na terra dos Leprechauns, duendes e fadas, ao olhar a morte com os olhos de uma criança. Foi o jeito de ela dizer um “até logo” para aquele coleguinha, enquanto nós, adultos, estávamos a dizer “adeus”.Saí de lá menos triste do que entrei. 

Pelos olhos de uma criança, senti a leveza da vida, o potencial libertador da morte, e a fragilidade da nossa egoísta forma de lidar com a perda. Agradeço-lhe, Irlanda, por cada minuto de aprendizado. Obrigado, mais uma vez, por me fazer olhar a vida em sua totalidade, plenitude, pelos olhos do amor, pelos olhos de duas crianças.

2 comentários:

  1. Um excelente texto!!! Suas palavras me emocionaram demais. Obrigada por compartilhar conosco um pouco da Irlanda. Um abraço bem apertado!!

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