Era o último final de
semana antes da chegada do Outono/Inverno irlandês. Fomos presenteados com um
céu límpido, uma leve brisa, temperatura amena. E de presente, vimos um por do
sol inesquecível, com os mais variados tons de laranja, rosa e azul. Estávamos
em uma pequena e remota ilha, com cerca de 250 habitantes, no oeste da Irlanda,
chamada Inisheer. Ela faz parte de um pequeno arquipélago, com três ilhas, que
juntas forma as Aram Islands. Compõem o Condado de Galway, apesar de estarem
mais próximas de Co. Clare.
O que nos levou até lá
foi um breve curso de final de semana: aprender a construir típicos e belos
muros irlandeses de pedra, sem nenhum cimento, argamassa, nada para mantê-los
em pé. Dois dias inteiros aprendendo a empilhar as pedras, de forma que elas
jamais caíssem, foi o desafio. Os instrutores eram homens da terra, construtores
dos muros de suas propriedades, fazendeiros, pescadores. Pessoas simples, mas
cheias de boa vontade, de muita alegria e anseio de ensinar.
Éramos um grupo
relativamente grande, cerca de trinta pessoas aprendendo. Alguns, veteranos,
mais experientes, outros, como eu, iniciantes, ouvindo, pela primeira vez sobre
a arte de se construir os muros de pedra. Começamos um tanto atrasados, já que,
como a boa e velha Irlanda, não se começa nada sem uma boa xícara de chá
primeiro.
Principiamos por
algumas palavras mais teóricas, explicações sobre o funcionamento e a importância
de cada pedra. Primeiro erguemos as pedras-mãe, uma fica na posição vertical,
outras, na horizontal, na base, e elas mantêm todas as outras edificadas.
Depois acrescentamos pedras médias e pequenas, que de fato criam o volume do
muro, e são chamadas de pedras-criança. Por último, no topo do muro, dispomos
de pedras mais largas e finas, que servem de apoio, e são chamadas pedras-pai.
A forma como chamar
cada pedra me deixou pensativo; a descrição das pedras, pelos professores, mais
parecia uma aula de psicologia, ou até mesmo um tratado de relacionamento
doméstico, um quem-é-quem no núcleo familiar. Assim como em nossas famílias, a
mãe é o sustentáculo, os filhos são os que alastram a existência e o pai é
aquele que protege e abriga.
Foi difícil fazer as
pedras se encaixarem perfeitamente, pois para que o muro fique estável, sólido
o suficiente para durar centenas de anos, mesmo com fortes ventos, chuvas,
tempestades atlânticas, deve-se dispor do máximo contato entre todas as rochas.
E para isso, o segredo é a fricção. É o encaixe perfeito, primeiro com a escolha
da rocha ideal, e depois moldar delicadamente, com o martelo e o cinzel,
esculpindo cada pedra-criança para que todas possam, juntas, formar uma única
força e manter o muro firme.
A tarefa não é fácil.
Cada pedra possui suas próprias peculiaridades, formatos os mais diferentes.
Muitas vezes, as pedras simplesmente se recusam tocar umas nas outras, e, nesse
caso, precisamos substituir por outra que melhor funcione naquele lugar. A grande
questão é que, mesmo recusando uma pedra para algum espaço, inevitavelmente
haverá outro, e este será perfeito para tal rocha. Nenhuma pedra é errada ou descartável.
Todas, das maiores e mais pesadas, às menores e mais leves, são importantes e
funcionam juntas.
Novamente, peguei-me meditando
sobre essas palavras. Nos últimos meses, vivi como se construindo um muro de
pedras, com todas as mudanças que a vida trouxe, e que permiti a mim mesmo
viver. Seja por mudar de país, de trabalho, de língua, e até rever as relações pessoais,
como amigos, amores, família, aprender sobre a construção de um muro de pedras
foi exatamente o que precisava. Era ouvir sobre o que é família, qual a
durabilidade das coisas, como estabelecemos contato com os outros, para que
possamos nos manter firmes e fortes.
No fim, estava
exausto por carregar pedras, mas muito mais cansado por tentar encaixar as rochas
perfeitas, ou criar tal possibilidade, lapidando-as. Porque ali o
perfeccionismo é uma dádiva, mas também maldição. Vi, também, o quanto ainda
tenho para ser lapidado, para me encaixar, para construir minha própria fortaleza
de pedras. Reconheci o sustento das minhas pedras-mãe, e sei que tenho, também,
as pedras-pai sobre mim. Mas o mais importante, terminei o curso com a certeza
de que não sou nem um, nem outro. Saí daquela ilha sabendo o que não sou, o que
foi um excelente (re)começo para construir meu muro de pedras, pedra-criança
que sou.
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