O ano era
2003. Após o fracasso de vendas de um dos álbuns mais intimistas de sua
carreira, American Life, que aborda
tons mais sombrios de sua natureza e discute temas controversos para os Estados
Unidos, como política, família e religião, Madonna precisava criar algo novo,
mas que não fugisse do discurso pregado no álbum recém-lançado. O vídeo-clipe
da música American Life, lançado
quase em conjunto com o álbum seria um clamor à paz, com cenas densas,
mostrando soldados feridos, crianças abandonadas, todo um conjunto deplorável que
assistimos nas guerras; o final do vídeo é um emblema de seus desejos e
pensamentos: George W. Bush beija Saddam Hussein, e depois encosta sua cabeça
no ombro do líder iraquiano, tudo explodido por uma granada, que fora jogada,
evidentemente, pela popstar.
Mas o plano
de marketing saiu pela culatra, pois
dias depois do lançamento do vídeo, foi declarada uma guerra no Oriente Médio, ainda
baseada no fatídico ataque ocorrido em 11 de setembro de 2001. Madonna preferiu
recuar e tirou o vídeo de circulação, lançando outro, menos agressivo (menos
inteligente, menos provocador, também). O que era um vídeo provocante tornou-se
um hino à mediocridade, com Madonna cantando na frente de dezenas de bandeiras
de vários países.
Eis que, como
em toda sua carreira, Madonna resolve reinventar-se, para não perder espaço –
nem dinheiro – e resolve investir em uma turnê pela Europa e Estados Unidos com
um novo e dinâmico show, vendendo em
suas apresentações o que sobrava em seu álbum: a busca por alguma ética.
Inicialmente, a turnê chamaria “The Whore of Babylon”, uma referência óbvia à
imagem que sempre atraiu a cantora a seu público: a prostituta; mas essa efígie
seria provocadora demais, e após poucos dias, Madonna desmentiu a história e
deu o nome, que se tornou oficial: THE RE-INVENTION TOUR.
O nome, nem um pouco desconexo, traduz o
que Madonna vivia na época. A ideia de reinventar-se estava profundamente
atrelada à Cabala, uma sabedoria mística que se amalgamou, nos conceitos
religiosos vivenciados por Madonna, ao judaísmo. Em seus cartazes de divulgação, a árvore da
vida, estilizada com o nome da turnê, estava sempre presente. Conceituando seu
espetáculo como a “Turnê da Reinvenção”, Madonna proclama que deve
reinventar-se para seus fãs e eles devem, também, reinventarem-se para a vida,
tornando-se pessoas melhores a cada dia. Atrelado a isso, ela apropriou-se do
título camaleônico que sempre a perseguiu, usando o que os meios de comunicação
julgavam dela como mecanismo para definir-se, em outros paradigmas:
Madonna pensou no título
Re-Invention Tour porque durante anos todos
disseram que ela estava sempre se reinventando – disse ele (Jamie King) – e, como é típico de
Madonna, ela brincou com esta ideia e a usou contra aqueles que a usavam. (O’BRIEN,
2008, p. 360)
O início do projeto já definia que perfil
de turnê Madonna queria alcançar. Além das extensas filmagens, ela chamou
Christian Lacroix, Jean Paul Gaultier, Miuccia Prada, Stella McCartney e Karl
Lagerfeld para produzirem os diversos figurinos usados durante cada bloco do
show, Stuart Price, músico consagrado na Europa, tornou-se o diretor musical e
Jamie King, o coreógrafo e diretor de palco. Quem produziu o documentário foi o
já famoso diretor Jonas Ӑkerlund. Selecionando os melhores entre os melhores, a
turnê pretendia ser o grande evento do ano:
Por conta de sua escala de
magnitude e de seu foco nos grandes sucessos, a turnê Re-Invention, naquele
verão, foi uma maneira que Madonna encontrou de devorar a concorrência.
(O’BRIEN, 2008, p. 359)
Madonna pretendia desbancar todas as
outras turnês daquele ano, resgatando seus clássicos da música pop, remetendo
às imagens diversas que ela construíra ao longo de mais de vinte anos de
carreira.
Madonna, ao fazer uma turnê que homenageia
sua própria história camaleônica, trouxe para seu público um estilo que todos
esperam. Aqueles que se espelham na cantora e em sua teatralidade narcísea
encontram uma Madonna superexposta. Mas não como a de costume, que faz arte
engajada de liberdade sexual. A Madonna reinventada é menos sexualizada e muito
mais política. Após esgotar seu discurso sobre liberdade sexual e feminismo, a
Madonna reinventada motiva seu público com ideias que abrangem o universo
religioso, a política americana e a visão que os americanos construíram de
família.
O primeiro show aconteceu em 24 de maio de
2004, há exatos dez anos, em Los Angeles, CA. Mesmo com alguns problemas
técnicos, comuns de primeiro show, obteve
exatamente o planejado pela equipe. Os meios de comunicação adoraram. A
jornalista Liz Smith, sobre a Re-Invention Tour, em sua coluna diária no New York Post, declarou:
Ela pode
ser uma esposa quase britânica, mãe de dois filhos, autora de livros infantis,
devota da Kabbalah e fazer um disco que nem todo mundo gostou. Mas bastou ela
dizer que vai voltar aos palcos que o ano de 1984 está todo de volta. Ela ainda
é a Rainha! (In: www.madonnaonline.com.br)
O show era programado para estimular todos
os sentidos humanos, numa explosão de palcos flutuantes, esteiras, telões
jamais vistos anteriormente. Isso, atrelado ao ideal americano de novidade, era
exatamente o que o mercado almejava. Pois a imensa “estimulação
sensório-motora”, realizada no palco, mas também comum na nova modernidade,
auxilia na construção de “corpos superexcitados” que se adaptam mais facilmente
às novas formas de consumo, que se tornam rapidamente obsoletas. E nada mais
fácil de consumir e tornar-se obsoleto do que um show.
A turnê era dividida em cinco blocos diferentes,
claramente demarcados, com interlúdios para troca de figurinos. O primeiro
bloco começa com imagens e vídeos em telões, acompanhados da música The beast within, que é uma compilação
de trechos da Bíblia, mais especificamente, partes do apocalipse. Na tela, uma
Madonna atormentada, com movimentos mecânicos em função da sobreposição das
fotos. O que se vê são trechos do ensaio feito com o fotógrafo Steven Klein,
intitulado X-STaTIC PRO=CeSS.
Assistimos à Madonna, com um visual atemporal, feito por Christian Lacroix e, ao
lado, há um chacal, vestidos incendiando; tudo em um ambiente lúgubre .
Em seu I’m
going to tell tou a secret, uma das primeiras cenas de bastidor é a artista
explicando as referências bíblicas da abertura do show. Ela diz que a “besta” a
que se refere, segundo uma interpretação das metáforas religiosas, é o mundo
moderno, o consumo, o excesso de materialismo, que devora o homem e o faz
submisso a uma força totalmente destrutiva. O que visualizamos, no show, é
exatamente o tormento de alguém que parece estar sendo devorado por algo
invisível, mas extremamente poderoso.
Quando a cantora sobe ao palco, seu visual
é Rococó, lembrando a Marie Antoinette do VMA dos anos 1990, sendo que seu corset é mais moderno, livre para os
movimentos de Pilates e de Yoga. Os telões absorvem o público com um cenário
que mistura os corredores de Versailles, salas no estilo Louis XVI e Madonna
vestida como a última rainha da França.
Este é o bloco menos engajado, talvez por
se tratar do início. É a apresentação grandiosa e grandiloquente a fim, apenas
de seduzir o público com imagens majestosas. Destacamos os vídeos de Chris
Cunningham, exibidos nos telões, enquanto Madonna canta Frozen, pois eles têm sugestões homoeróticas, como um balé
agressivo em um ambiente que remete a uma câmara embrionária. Nessas imagens, o
duelo de corpos, associado ao amor e à dor, é um movimento que traz ao público
a angústia e a violência silenciosa do preconceito, que conforme a letra, é
traduzida “when your heart is not open”.
O segundo bloco, com espírito militar – e
militante – narra cenas de guerra, movimentos corporais que remetem aos
soldados em campos de concentração. As músicas são num estilo rock and roll e ela veste uma farda do
exército.
Destaca-se a desconstrução religiosa, pois
na música American Life, que abre o
bloco, vários bailarinos usam vestimentas típicas de diversas religiões, mas
com um tom mais erotizado, como freiras com hábitos curtíssimos e padres com
trejeitos gays.
No documentário I’m going to tell you a secret, Madonna declara que “religião é
fragmentação”, por isso os bailarinos, ao longo da dança, despem-se para
ficarem mais próximos. A roupa, nesse caso, simbolizaria a fragmentação das
religiões e desnudar-se seria a igualdade entre todos. É o meio que ela
encontra para começar a inserir, delicadamente, um juízo sobre a questão da
Palestina e de Israel, já que os judeus e mulçumanos despem-se mutuamente, por
último, abraçando-se, quando estão apenas de roupas íntimas.
Logo depois, entram no palco várias
réplicas de fuzis, servindo de bastões para os bailarinos e a cantora
realizarem a coreografia, que mistura passos de circo com o de soldados.
Podemos analisar essas armas “desarmadas” como metáforas de uma desvalorização
do potencial bélico e o enobrecimento da função estética que a arma ganha.
Talvez este bloco tenha sido o mais
controverso do show, pois os apelos políticos, as imagens visualizadas nos
telões, a própria coreografia, tudo pressupunha um desejo anti-guerra, a
necessidade de rever valores e, principalmente, a importância de os americanos
pensarem na hora de escolher seus governantes. Madonna arriscara-se ao colocar,
novamente, sua carreira a serviço de suas convicções, buscando orientar seu público,
explicitando o que ela enxergava como identidade americana, na era Bush.
Do terceiro bloco do show, que remete aos
cabarés da década de 1920 e ao carnaval europeu, o ponto alto da crítica social
é a última música. Numa cadeira elétrica, Madonna canta Lament, música escrita especialmente para o filme Evita, de 1996. A associação da música com a cena remete não mais ao filme, mas às
situações dos próprios Estados Unidos naquele momento.
The choice was mine, and mine completely
I could have any prize that I desired
I could burn with the splendor of the brightest fire
Or else, or else I could choose time
O que se visualiza não é apenas Madonna em
uma cadeira elétrica. Assim como todas as outras metáforas dos outros blocos,
essa também tem a intenção de desconstruir o valor real – matar – e elaborar
uma significação outra. O elemento que auxilia isso está sendo exibido nos
telões: um símbolo hebraico, um dos 72 nomes de Deus, que indica negação do ego.
Mas ele também representa novos governos e novas formas de vitória e de conduzir
o mundo. Já a cadeira, nesse contexto, tanto pode ser lida como o objeto de
tortura e morte, como o próprio trono – mesmo porque a cadeira sobe, leva
Madonna para o alto do palco. Enquanto ela canta como soberana, a cadeira que a
leva para o topo é, também, o fim de reinado.
No quarto bloco, mais religioso, cheio de
referências familiares, mas ainda refletindo sobre política e paz, as duas
últimas músicas são o clímax. Quando Madonna canta Mother and Father e Imagine,
há um forte apelo emocional com as imagens dos telões.
Assistimos à Madonna católica, rezando aos
pés do Cristo, em frente ao Sagrado Coração. As imagens de fundo soam como
representações de suas raízes familiares. Ensinada, desde cedo, a ir à igreja e
a viver sob os dogmas católicos, ela mostra, nesse trecho do show, que mesmo
depois de assumir o judaísmo e a Cabala, seu passado não é negado. Madonna canta
sentada, já que se dedica, também, ao violão; a música é Mother and Father, composta como uma catarse, já que é uma reflexão
madura e coerente sobre a perda de sua mãe, quando a artista tinha apenas cinco
anos de idade:
My mother died when I was five
And all I did was sit and cry
I cried and cried and cried all day
Until the neighbors went away
They couldn't take my loneliness
I couldn't take their phoniness
My father had to go to work
I used to think he was a jerk
I didn't know his heart was broken
And not another word was spoken
He became a shadow of
The father I was dreaming of
I made a vow that
I would never need another person ever
Turned my heart into a cage
A victim of a kind of rage
O quinto e último bloco, o mais dançante, inicia
com dança e música escocesa, incluindo um tocador de gaita-de-foles. Trazendo
ao público seus maiores clássicos, como Music,
Papa don’t preach, Crazy for You e Holiday, a audiência envolve-se como no início, mas já
transformada, e principalmente, carregada pelas emoções dos blocos anteriores.
A performance de Madonna alterara o estado de ânimo do público e fizera dele um
tentáculo do palco. Mas é emblemática a conclusão do bloco– terminando, assim,
o show. Cantando Holiday, proclamando o direito de liberdade de expressão e a
necessidade de celebrar a vida, encerra-se a apresentação com uma Madonna extremamente
à vontade, que para os menos atentos, parece até não estar mais realizando
coreografias.
Ao fundo, bandeiras de todos os países se
misturam, remetendo ao segundo videoclipe de American Life. As bandeiras, entrelaçadas, sugerem a integração dos
povos. Fica óbvio o desejo da artista quando o projetor congela,
propositalmente, nas duas últimas bandeiras unidas, formando apenas uma: Israel
e Palestina, naquele momento, tornam-se um único povo, pelo menos no que se refere
aos símbolos estandartes.
A última mensagem, concluindo a noite para
seu público, é a frase RE-INVENT YOURSELF,
solicitando à audiência que faça como a artista, que os fãs sigam os conselhos
de seu ídolo.
Alguns anos depois, quando
tivemos a chance de assistir aos bastidores da turnê, aos fatigantes ensaios,
escolhas de dançarinos e, principalmente, tivemos a chance de ouvir a voz de
uma Madonna (sempre atriz) familiar, mãe, esposa, filha e amiga pudemos
comparar a turnê com suas mensagens originais, através das falas da artista. O
processo de criação de um show desse porte é sempre maior do que o imaginado.
Talvez, por isso, o desejo de refazer sua imagem de bastidor, de
“reinventar-se” para seu público, como fez em 1991, em Truth or Dare: na cama com Madonna.
Os bastidores, em alguns momentos, mais se
assemelham a uma reunião religiosa, com direito de pregação de um mestre de
Cabala do que a um filme da Madonna. Não estamos condenando o que foi escolhido
como material publicado, pelo contrário: ressaltamos o valor ético de sua obra,
que tenta levar para o resto do mundo o que apenas algumas cidades tiveram
acesso, em 2004. O DVD I’m going to tell
you a secret, assim, finaliza a proposta ética de Madonna, cantora
performática e criadora imagens, vendedora de si mesmo, mas que se propõe,
também a vender mais que álbuns, vídeos e shows: vende política, paz,
solidariedade.
Sua voz deixa de ser o ponto forte,
enquanto cantora, para tornar-se um grão no palco. A performance, amalgamando
os vídeos, coreografias e atuações são o verdadeiro grito da artista.
O movimento da dança, por si só, faz
balançar a crença nesse mundo verdadeiro e transcendente. A cadência, a dança
põe em xeque a aparente imobilidade das coisas, a rigidez imposta ao
pensamento, a fixidez forjada pelas palavras. Com o ritmo, o mundo deixa de ser
estável; com os gestos, a linguagem deixa de ser unívoca. E as idéias ganham
leveza. Mas é preciso um longo caminho para o espírito tornar-se livre de suas
antigas convicções e ganhar a leveza de um dançarino. É preciso reinventar-se,
seguir o conselho de Madonna para tornar-se mais livre e, como ela declarou em
seu documentário, “ver o mundo através dos olhos de uma criança”.