terça-feira, 24 de setembro de 2019

Construindo um muro de pedras



Era o último final de semana antes da chegada do Outono/Inverno irlandês. Fomos presenteados com um céu límpido, uma leve brisa, temperatura amena. E de presente, vimos um por do sol inesquecível, com os mais variados tons de laranja, rosa e azul. Estávamos em uma pequena e remota ilha, com cerca de 250 habitantes, no oeste da Irlanda, chamada Inisheer. Ela faz parte de um pequeno arquipélago, com três ilhas, que juntas forma as Aram Islands. Compõem o Condado de Galway, apesar de estarem mais próximas de Co. Clare.


O que nos levou até lá foi um breve curso de final de semana: aprender a construir típicos e belos muros irlandeses de pedra, sem nenhum cimento, argamassa, nada para mantê-los em pé. Dois dias inteiros aprendendo a empilhar as pedras, de forma que elas jamais caíssem, foi o desafio. Os instrutores eram homens da terra, construtores dos muros de suas propriedades, fazendeiros, pescadores. Pessoas simples, mas cheias de boa vontade, de muita alegria e anseio de ensinar.


Éramos um grupo relativamente grande, cerca de trinta pessoas aprendendo. Alguns, veteranos, mais experientes, outros, como eu, iniciantes, ouvindo, pela primeira vez sobre a arte de se construir os muros de pedra. Começamos um tanto atrasados, já que, como a boa e velha Irlanda, não se começa nada sem uma boa xícara de chá primeiro.


Principiamos por algumas palavras mais teóricas, explicações sobre o funcionamento e a importância de cada pedra. Primeiro erguemos as pedras-mãe, uma fica na posição vertical, outras, na horizontal, na base, e elas mantêm todas as outras edificadas. Depois acrescentamos pedras médias e pequenas, que de fato criam o volume do muro, e são chamadas de pedras-criança. Por último, no topo do muro, dispomos de pedras mais largas e finas, que servem de apoio, e são chamadas pedras-pai.

A forma como chamar cada pedra me deixou pensativo; a descrição das pedras, pelos professores, mais parecia uma aula de psicologia, ou até mesmo um tratado de relacionamento doméstico, um quem-é-quem no núcleo familiar. Assim como em nossas famílias, a mãe é o sustentáculo, os filhos são os que alastram a existência e o pai é aquele que protege e abriga.

Foi difícil fazer as pedras se encaixarem perfeitamente, pois para que o muro fique estável, sólido o suficiente para durar centenas de anos, mesmo com fortes ventos, chuvas, tempestades atlânticas, deve-se dispor do máximo contato entre todas as rochas. E para isso, o segredo é a fricção. É o encaixe perfeito, primeiro com a escolha da rocha ideal, e depois moldar delicadamente, com o martelo e o cinzel, esculpindo cada pedra-criança para que todas possam, juntas, formar uma única força e manter o muro firme.

A tarefa não é fácil. Cada pedra possui suas próprias peculiaridades, formatos os mais diferentes. Muitas vezes, as pedras simplesmente se recusam tocar umas nas outras, e, nesse caso, precisamos substituir por outra que melhor funcione naquele lugar. A grande questão é que, mesmo recusando uma pedra para algum espaço, inevitavelmente haverá outro, e este será perfeito para tal rocha. Nenhuma pedra é errada ou descartável. Todas, das maiores e mais pesadas, às menores e mais leves, são importantes e funcionam juntas.


Novamente, peguei-me meditando sobre essas palavras. Nos últimos meses, vivi como se construindo um muro de pedras, com todas as mudanças que a vida trouxe, e que permiti a mim mesmo viver. Seja por mudar de país, de trabalho, de língua, e até rever as relações pessoais, como amigos, amores, família, aprender sobre a construção de um muro de pedras foi exatamente o que precisava. Era ouvir sobre o que é família, qual a durabilidade das coisas, como estabelecemos contato com os outros, para que possamos nos manter firmes e fortes.

No fim, estava exausto por carregar pedras, mas muito mais cansado por tentar encaixar as rochas perfeitas, ou criar tal possibilidade, lapidando-as. Porque ali o perfeccionismo é uma dádiva, mas também maldição. Vi, também, o quanto ainda tenho para ser lapidado, para me encaixar, para construir minha própria fortaleza de pedras. Reconheci o sustento das minhas pedras-mãe, e sei que tenho, também, as pedras-pai sobre mim. Mas o mais importante, terminei o curso com a certeza de que não sou nem um, nem outro. Saí daquela ilha sabendo o que não sou, o que foi um excelente (re)começo para construir meu muro de pedras, pedra-criança que sou.





segunda-feira, 16 de setembro de 2019

DAS TREVAS À LUZ…



No dia 11 de maio de 2019, acordei às três horas da manhã, feliz da vida. Num frio típico de primavera, cerca de quarto graus, encontrei um grupo de pessoas muito queridas e fizemos uma caminhada. Coisa estranha, andar de madrugada, no frio, no escuro. Mas havia uma causa por detrás...

Foi um evento muito especial. Darkness into light é uma caminhada anual, que tanto simbólica, quanto literalmente, é sair das trevas à luz. Com a finalidade de arrecadar fundos para associações de apoio a pessoas que sofrem de depressão e linhas telefônicas que são suporte a possíveis suicidas (Tel. 1800 247 247 ou SMS HELP 51444), o evento mobiliza centenas de milhares de pessoas por toda a Irlanda (e até fora dela!). Vestindo camisetas amarelas (a cor que simboliza o suicídio), caminhando pelas trevas do Marlay Park, havia adultos, crianças, cães, todo tipo de gente unida, desejando um mundo mais saudável. Nada de mundo mais feliz, porque a depressão nada tem a ver com tristeza, com alegria. Depressão é outro papo, é doença, e tem tratamento.

E estar ali justo na véspera do dia das mães foi muito importante para mim. A minha sofre de depressão há vários anos, passamos maus bocados juntos, e eu era perdido, não entendia o que acontecia com ela, sentia-me fraco, inseguro, incapaz, irremediavelmente imprestável. Demorou bastante tempo para eu entender que não era culpa minha, nem dela, nem de ninguém. Depressão é uma doença, que como outra qualquer, possui seus gatilhos, seus picos agudos e tempos de calmaria.

Também tenho amigos muitos próximos que se enquadram como depressivos. E participar dessa caminhada foi estar ali por uma causa pessoal. Foi entender as trevas, o frio, o vazio da noite da depressão, a ausência de emoções, sentimentos e perspectivas, e, lentamente, acompanhar a aurora, a luz, o brilho do céu recebendo o calor do sol, vermelho, alaranjado. Sol este, que trouxe novamente o brilho dos meus olhos, a possibilidade de olhar o outro, de ver o mundo, de sentir, de ser, de interagir.

Eu estava com pessoas que amo, que respeito, mas à noite, num parque tenebroso, não podia vê-los. Tudo era apenas um amontoado de vozes. Pude entender melhor e vivenciar, pela metáfora, o que é a depressão. E como é difícil estar na noite escura, sentindo-se só. Quando o sol raiou, ao ver os que amo, era como se eu saísse do estado depressivo e, então, pude me conectar com o mundo.

A Irlanda, os irlandeses, mais uma vez, trouxeram-me a experiência como aprendizado, o vivenciar como chance de entender melhor a mim, o outro, o mundo. Saí da escuridão para a luz não como depressivo, mas como ignorante que teve a chance de aprender. E nada nesse mundo nos deixa mais vivo que a vontade de aprender!


Que a aurora seja sempre a nossa busca, a nossa constituição e, mesmo se a depressão nos escurecer, que encontremos os meios e o suporte para voltar à luz. Para voltar aos braços de quem amamos, de quem nos ama. E que a ESPERANÇA/HOPE seja sempre a nossa companheira de jornada, pois nela reside a cura para qualquer doença.


sábado, 14 de setembro de 2019

Funeral Irlandês

Nesta semana, foi a primeira vez em que fui a um funeral aqui na Irlanda. Era de um menino de sete anos, que lutou por cerca de dois contra um câncer cerebral, e não resistiu após brava batalha. Todos vestiam roupas especiais na ocasião, após cerca de três dias do falecimento. Foi o tempo necessário para organizar tudo, e fazer daquela despedida um momento respeitável. 

Nada de velório de 24 horas, como no Brasil, nada de roupas comuns do dia a dia. Era um ritual importante.Evidentemente, as pessoas próximas a mim que desencarnaram vieram à mente, e em conjunto, as memórias de seus enterros e as experiências daqueles momentos. Um funeral irlandês é um ritual complexo, com momentos certos de entrada, saída, cumprimentos, até lágrimas e risos. 

Lembrei do velório de vovó, pessoas entrando e saindo, estranhos espiando o caixão para ver se “conheciam o morto”, além de que ríamos na porta da capela, rememorando as bravatas dela, de sua vida livre e cheia de narrativas. Aqui, fomos orientados pela fala sisuda de um padre, com poucas interferências dos familiares, a ritualística católica era seguida.Mas o que mais me comoveu durante a missa foi ver como as crianças estavam presentes, o que é incomum no Brasil. 

Não digo apenas enquanto figuras compondo aquele espaço de luto, mas efetivamente enlutadas. Choravam copiosamente, seus rostos naturalmente pálidos e ruivos tornavam-se rubros, úmidos, deformados pela dor.O cachorro estava presente, também. Curiosamente, ele latia algumas vezes, em momentos de silêncio dos humanos. Sua presença foi demasiado difícil para mim, pois a relação entre uma criança e o seu animal é uma das coisas mais puras e belas de se ver. E o bicho, ali, compartilhava não apenas do luto, mas da memória do que foi vivido pelo menino, o rompimento de uma história, de uma narrativa-vida.

Ao final, quando o caixão era levado de volta para o carro, este que o levaria posteriormente ao crematório, todos paramos em prece, do lado de fora da igreja. Os pais, visivelmente consternados, choravam ao ver tal cena. Porém, atrás deles, através de uma parede de vidro que dava para a loja da igreja, havia uma menina pequena, de no máximo três anos, que estava em pé, sozinha, apoiada pelo lado de dentro, no vidro. Ela olhava para os pais do menino e sorria tanto, a ponto de ficar vermelha, de inclinar a cabecinha para trás. Os pais do garoto, de costas, nem notaram, lógico.Mas eu vi ali a beleza de uma criança que, em sua total falta de linguagem, conseguia se comunicar com os anjos. 

Ela via algo que nenhum de nós era capaz de ver, e sorria, alegremente. Ela sabia que aquele momento era especial, e havia seres bons, que traziam paz, acalento e proteção.Como todas as minhas experiências na Irlanda, eu estava ansioso - além de triste e enlutado, neste caso -  por não saber como seria, culturalmente, o ritual. E mais uma vez, fui pego desprevenido na Ilha da Esmeralda, na terra dos Leprechauns, duendes e fadas, ao olhar a morte com os olhos de uma criança. Foi o jeito de ela dizer um “até logo” para aquele coleguinha, enquanto nós, adultos, estávamos a dizer “adeus”.Saí de lá menos triste do que entrei. 

Pelos olhos de uma criança, senti a leveza da vida, o potencial libertador da morte, e a fragilidade da nossa egoísta forma de lidar com a perda. Agradeço-lhe, Irlanda, por cada minuto de aprendizado. Obrigado, mais uma vez, por me fazer olhar a vida em sua totalidade, plenitude, pelos olhos do amor, pelos olhos de duas crianças.