terça-feira, 5 de novembro de 2019

Em busca de âncora e vela em uma nau à deriva: Um olhar sobre a docência em tempos distópicos


Como sabiam os arquitetos de Gilead, para instituir um sistema totalitarista eficaz ou, de fato, qualquer sistema, seja lá qual for, é preciso que se ofereça alguns benefícios e liberdades, pelo menos para uns poucos privilegiados, em troca daqueles que se retira.(ATWOOD, 2017. p. 362)

O Conto da Aia, romance escrito pela canadense Margaret Atwood, que lida com um futuro próximo – até demais – do nosso é o primeiro içar de velas do que pretendo discorrer sobre a pesquisa em educação. Não apenas por ser um dos melhores livros que li nos últimos tempos, mas principalmente por refletir a função social do trabalho e a formação intelectual através da prática da descoberta empírica, além de apontar exatamente o oposto de tal função e formação,O Conto da Aia é uma narrativa sobre a falta do saber, sobre a negação do ato de ler. A palavra escrita é negada a todos, apenas uma elite totalitária tem acesso aos livros no romance. As mulheres são subalternas e objetificadas, a arte não existe mais, qualquer pessoa que tenha alguma atitude crítica é punida com a morte ou esquecimento, que daria, aqui, no mesmo. Pois esse universo ficcional parece-me bastante realístico, quando o nossocontexto é também o de que a ciência e a arte são encaradas como um produto feito somente para agradar a sociedade.
Trago à tona este romance, como ponto de partida em meu ensaio, a fim de ilustrar a distopia literária, estética que retrata os modelos totalitários, uma prospecção frustrante e caótica de futuro, na qual a humanidade fica à mercê de uma força invisível e avassaladora. Essa força é o próprio sistema, que se esconde, principalmente, na abolição do conhecimento e do senso crítico. A distopia é um modelo literário que nos serve de âncora e vela para sabermos onde estamos e para aonde vamos, sem as camadas lustrosas da cultura de massa, que nos entorpece.
Vivemos num momento histórico que nos soa como distopia, quando os museus são fechados, os livros abolidos, as obras de arte rechaçadas, a educação devassada, e a pesquisa desvalorizada. Isso porque tanto a educação, quanto a pesquisa e a arte são exatamente o inverso do agrado, do que acomoda; são as fronteiras sombrias que acompanham tanto a nossa existência, quanto a nossa construção social e nossas relações com o mundo, servem para incomodar a humanidade, produzir novos significados, reavaliar valores e estabelecer paradigmas que nos fazem melhores do que ontem, piores que amanhã. Nosso potencial de construção de novos saberes e desconstrução de antigos valores é o que nos faz demasiadamente humanos, para que estejamos sempre elaborando novos paradigmas e sofisticando nossas atividades.
Como profissional de Letras, pesquiso Literatura e suas reverberações nos diversos campos das artes e do saber. Entendo que o que Margaret Atwood nos apresenta em seu O Conto da Aia é um espelho muitíssimo verossímil do mundo em que vivemos, hoje: “Nós parecíamos capazes de escolher naquela época. Éramos uma sociedade que estava morrendo (...) de um excesso de escolhas” (ATWOOD, 2017. p. 37). Quando estamos aparatados de informações, escassos de saberes e nulos de crítica. Mas ainda temos a educação como instrumento capaz de estabelecer novos caminhos, a fim de nos afastarmos da realidade de Aia.
Trabalhando com o Ensino Superior há mais de uma década eformando professores de Letras, Pedagogia, História, Geografia e Matemática minhas experiências com pesquisa na área de licenciatura perpassam, via de regra, a formação do professor-leitor, seja este de qual área for. Isso porque a concepção de ensino atrelado à pesquisa, obrigatoriamente, é uma tarefa de ler, é um exercício contínuo de produzir, reproduzir, conduzir e reconduzir discursos para a elaboração de saberes. Concebo a educação como um instrumento para não nos tornarmos prisioneiros – de nós mesmos, do outro, dos outros – e a leitura sempre será o primeiro passo para o ato libertador. Dessa maneira, meu trabalho com licenciaturasé sempre buscar desenvolver não apenas o perfil crítico,que julgo ser basilar, mas principalmente formar professores capazes de ler. Não há conhecimento sem leitura, a atividade essencial da pesquisa é o ato de ler e a relação do professor com o texto deve ser, via de regra, um ato de desvelamento, de exercício pessoal e de constante questionamento para com o mundo. Não há como produzir conhecimento sem, antes, questionar o conhecimento já existente. Não há maneira alguma de se formar professores pesquisadores sem ser através do questionamento crítico, embasado, de pesquisas já realizadas e de competência leitora.
Mas voltemos à distopia que nos cabe: a prática da pesquisa, que deve começar nas primeiras classes de Educação Infantil, através de métodos exploratórios e empíricos, para que as crianças tenham suas leituras do mundo associadas às primeiras leituras das palavrasescritas, queficam subjugadas a projetos pré-prontos, sem qualquer instrumentalização para que as crianças possam elaborar, colaborar e explorar o novo. Nossos professores, aparentemente, têm dificuldades em realizar essa tarefa. Associado a isso, há de pensarmos, também, e talvez, principalmente, na função social dos espaços de ensino, na forma com que o poder público compreende a formação de professores e, sobretudo, os aportes financeiros destinados à educação em nosso país.Sobre o que vislumbro a respeito da educação e das artes hoje, recorro a um texto que ilustra com propriedade nossa atual situação: 

Eu afirmo, senhores, que os cortes propostos para o orçamento especial das ciências, letras e artes são negativos por dois motivos. São insignificantes do ponto de vista financeiro e danosos sob todos os outros pontos de vista. Insignificantes do ponto de vista financeiro. Isto é evidente que me sinto constrangido ao submeter à assembleia o resultado de um cálculo proporcional que fiz. (...)E qual é o momento escolhido? Aqui está, ao meu ver, o grave erro político do qual lhes falava no início. Qual é o momento escolhido para colocar em dúvida, de uma só vez, todas as instituições? O momento no qual elas são mais necessárias que nunca, o momento no qual, ao invés de limitá-las, seria preciso ampliá-las e fazê-las crescer. (ORDINE, 2017. p.110-111)

Victor Hugo, em 1848, pronunciou esse eloquente discurso, acerca das objeções às propostas governamentais de cortar recursos destinados à cultura. Reduzir subsídios é assumir a falta de importância da educação em nossa sociedade.  Estamos, infelizmente, à mercê dos mesmos frustrantes paradigmas do sistema citado por Victor Hugo, que não apenas ofusca o potencial da educação e pesquisa, mas alquebra a estrutura educacional, deteriorando a infraestrutura escolar, desmantelando currículos, enfraquecendo o papel docente, transformando a escola em um conjunto sombrio de ações burocráticas, documentais, um misto de espaço carcerário, psicológico, de serviço social e, quando sobra algum tempo, educacional.
Ao enfrentarmos o processo educativo além do que o sistema nos impõe, não negando os compromissos burocráticos, mas reconhecendo a preponderância do aperfeiçoamento constante que a prática educativa exige, geramos, consequentemente, avalorização da formação do professor. No entanto, reforço que é preciso ensinar os professores a refletir, poisas teorias e práticasdevem ser conjugadas. Ser professor é exercer atos reflexivos e toda reflexão é um ato político, etendo a pesquisa no centro da formação e da prática docente, os professores tornam-se consumidores mais críticosdo saber e articuladoresda atividade educativa.
     Nossa tarefa de formar professores pesquisadores é um exercício árduo, ou até mais do que isso; é uma ação quixotesca, ao lutarmos diariamente contra gigantes disfarçados de moinhos de vento. Como Odisseu, nosso navio vive à mercê dos mares regidos pelos deuses, no nosso caso, o sistema neoliberal. Ele nos imputa um plano ágil, colorido, dinâmico, cheio de informações para serem aplicadas simultaneamente, num espaço-tempo exíguo, sem a necessidade de problematizar, de analisar, muito menos, de ter competência leitora para tal. Para isso, bastaria escorregarmos os dedos em aplicativos, lermos 140 caracteres e já saberíamos de tudo, seríamos os maiores conhecedores de todas as informações. Nessa perspectiva, tomamos como princípio educativo a base acadêmica, sua especificidade e condição para que a pesquisa seja um elo eficaz no exercício permanente na produção de conhecimento e no aprofundamento da análise de questões relevantes. Mas isso é processual, é um ato a ser elaborado. Nenhum professor amanhece pesquisador, assim como ninguém acorda professor. É necessária uma postura investigativa constante, na qual a teoria torna-se uma ação dinâmica, não basta somente falarmos que todos os professores são pesquisadores.
Rememoro Marina Abramovic, performer iugoslava que considero a mais importante artista de nosso tempo, que trabalha com o corpo como suporte e instrumento na produção de saberes. Ela institucionalizou um método artístico conhecido com seu sobrenome, o Método Abramovic. Tal instrumentalização consiste em vários exercícios, extremamente disciplinados, para a construção de uma atitude cem por cento presente, tanto da mente, quanto do corpo. E o método não é apenas para artistas. É um exercício de pesquisa corporal e mental para, principalmente, as pessoas comuns, a fim de produzirem novas possibilidades de pensarem o mundo.Utilizandoseu método, Marina desenvolveu uma performance intitulada A Artista está presente,  que durou 736 horas, com um público de 850 mil pessoas.
     Era uma performance singela, e nas palavras de Marina, “(...) as regras eram muito simples: cada pessoa podia sentar diante de mim pelo tempo, breve ou longo, que desejasse. Nós manteríamos contato pelo olhar. O público não deveria tocar em mim nem falar comigo” (ABRAMOVIC, 2017. p. 350). Imagino o potencial criativo de um ato tão delicado, com apenas três suportes: duas cadeiras e uma mesa. Mas a performance mobilizou, inclusive, neurocientistas, a fim de estudarem as ondas cerebrais da artista e dos participantes da performance, a natureza das fronteiras de nosso mundo interior. Mas qual relação entre uma performance realizada em um museu estadunidense e a formação docente?
Para mim, todas as relações possíveis. Inicialmente, porque o olhar, o aprimoramento do ver, associado ao sentir, é o primeiro passo para a construção do saber. E esse “olhar” não se dá apenas com o aparelho visual, mas com a conexão de todos os sentidos, na profusão de sensações que o outro nos desperta. Produzir saberes sempre vai passar pelo outro, pelo interlocutor, por aquele que sempre será capaz de acrescentar algo em nossa produção de conhecimento. Essa performance também é um exercício conjunto de empirismo e cognoscibilidade, de descoberta e despertar, ações intrínsecas do conhecimento.Para olhar o outro, era necessário olhar para si, estabelecer a conexão dos saberes e sentimentos internos para sentir o outro. Marina disse que saía, todos os dias, depois de oito horas ininterruptas de performance, muitíssimo sensibilizada. Porque aprendia, porque conseguia produzir saberes que não seria capaz de fazer sozinha. Pois foi com o outro, os milhares de “outros” que se sentaram à frente dela, que aconteceu a produção de conhecimento.
O Conto da Aia e A artista está presente são totalmente paradoxais entre si. Enquanto o romance anuncia o fim da liberdade através do fim da educação, a performance nos nutre com a possibilidade de sermos livres através do conhecimento e da arte. O exercício de olhar, de se permitir conectar e vivenciar é o principal passo para a construção de saberes, para entender os processos necessários para a construção de uma educação efetiva, em que a formação não seja o mero exercício de informações absorvidas. Ao contrário dos moldes de educação que nos enforma, Marina ensinou, através da performance, que somos seres capazes de produzir conhecimento até no silêncio. E então o que acontece com nossos alunos? O que acontece conosco, que não conseguimos, aos esgoelarmos em sala, produzir conhecimento? Para onde olhamos, para onde dirigimos os olhos discentes?
     Finalizo, assim, este ensaio, proclamando que a educação seja, sim, um processo pessoal, para que a formação docente, através da pesquisa, seja um ato cotidiano, baseado não apenas nos métodos científicos, mas principalmente, no exercício diário de pesquisar-se, através de mecanismos mais abrangentes, instintivos, holísticos, em que a percepção seja valorizada. Que ancoremos em mares profundíssimos, que de acordo com a qualidade, com a quantidade de leituras transformadas em saber, que sejamos professores melhores, a fim desermos vela a outras naus, de termos novos pesquisadores formados através de nossa prática. E principalmente, ao olharmos nos olhos de nossos alunos, assim como Marina exercitou sua presença silenciosa, possamos exercitar e aprimorar nossa formação contínua de educadores, de pesquisadores, mesmo que os deuses influenciem nossas marés e tentem nos levar ao encalhe em ilhas da infecunda e real distopia.



ABRAMOVIC, Marina. Pelas Paredes. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017.
ATWOOD, Margaret. O Conto da Aia. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

ORDINE, Nuccio. A utilidade do Inútil. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Construindo um muro de pedras



Era o último final de semana antes da chegada do Outono/Inverno irlandês. Fomos presenteados com um céu límpido, uma leve brisa, temperatura amena. E de presente, vimos um por do sol inesquecível, com os mais variados tons de laranja, rosa e azul. Estávamos em uma pequena e remota ilha, com cerca de 250 habitantes, no oeste da Irlanda, chamada Inisheer. Ela faz parte de um pequeno arquipélago, com três ilhas, que juntas forma as Aram Islands. Compõem o Condado de Galway, apesar de estarem mais próximas de Co. Clare.


O que nos levou até lá foi um breve curso de final de semana: aprender a construir típicos e belos muros irlandeses de pedra, sem nenhum cimento, argamassa, nada para mantê-los em pé. Dois dias inteiros aprendendo a empilhar as pedras, de forma que elas jamais caíssem, foi o desafio. Os instrutores eram homens da terra, construtores dos muros de suas propriedades, fazendeiros, pescadores. Pessoas simples, mas cheias de boa vontade, de muita alegria e anseio de ensinar.


Éramos um grupo relativamente grande, cerca de trinta pessoas aprendendo. Alguns, veteranos, mais experientes, outros, como eu, iniciantes, ouvindo, pela primeira vez sobre a arte de se construir os muros de pedra. Começamos um tanto atrasados, já que, como a boa e velha Irlanda, não se começa nada sem uma boa xícara de chá primeiro.


Principiamos por algumas palavras mais teóricas, explicações sobre o funcionamento e a importância de cada pedra. Primeiro erguemos as pedras-mãe, uma fica na posição vertical, outras, na horizontal, na base, e elas mantêm todas as outras edificadas. Depois acrescentamos pedras médias e pequenas, que de fato criam o volume do muro, e são chamadas de pedras-criança. Por último, no topo do muro, dispomos de pedras mais largas e finas, que servem de apoio, e são chamadas pedras-pai.

A forma como chamar cada pedra me deixou pensativo; a descrição das pedras, pelos professores, mais parecia uma aula de psicologia, ou até mesmo um tratado de relacionamento doméstico, um quem-é-quem no núcleo familiar. Assim como em nossas famílias, a mãe é o sustentáculo, os filhos são os que alastram a existência e o pai é aquele que protege e abriga.

Foi difícil fazer as pedras se encaixarem perfeitamente, pois para que o muro fique estável, sólido o suficiente para durar centenas de anos, mesmo com fortes ventos, chuvas, tempestades atlânticas, deve-se dispor do máximo contato entre todas as rochas. E para isso, o segredo é a fricção. É o encaixe perfeito, primeiro com a escolha da rocha ideal, e depois moldar delicadamente, com o martelo e o cinzel, esculpindo cada pedra-criança para que todas possam, juntas, formar uma única força e manter o muro firme.

A tarefa não é fácil. Cada pedra possui suas próprias peculiaridades, formatos os mais diferentes. Muitas vezes, as pedras simplesmente se recusam tocar umas nas outras, e, nesse caso, precisamos substituir por outra que melhor funcione naquele lugar. A grande questão é que, mesmo recusando uma pedra para algum espaço, inevitavelmente haverá outro, e este será perfeito para tal rocha. Nenhuma pedra é errada ou descartável. Todas, das maiores e mais pesadas, às menores e mais leves, são importantes e funcionam juntas.


Novamente, peguei-me meditando sobre essas palavras. Nos últimos meses, vivi como se construindo um muro de pedras, com todas as mudanças que a vida trouxe, e que permiti a mim mesmo viver. Seja por mudar de país, de trabalho, de língua, e até rever as relações pessoais, como amigos, amores, família, aprender sobre a construção de um muro de pedras foi exatamente o que precisava. Era ouvir sobre o que é família, qual a durabilidade das coisas, como estabelecemos contato com os outros, para que possamos nos manter firmes e fortes.

No fim, estava exausto por carregar pedras, mas muito mais cansado por tentar encaixar as rochas perfeitas, ou criar tal possibilidade, lapidando-as. Porque ali o perfeccionismo é uma dádiva, mas também maldição. Vi, também, o quanto ainda tenho para ser lapidado, para me encaixar, para construir minha própria fortaleza de pedras. Reconheci o sustento das minhas pedras-mãe, e sei que tenho, também, as pedras-pai sobre mim. Mas o mais importante, terminei o curso com a certeza de que não sou nem um, nem outro. Saí daquela ilha sabendo o que não sou, o que foi um excelente (re)começo para construir meu muro de pedras, pedra-criança que sou.