Como
sabiam os arquitetos de Gilead, para instituir um sistema totalitarista eficaz
ou, de fato, qualquer sistema, seja lá qual for, é preciso que se ofereça
alguns benefícios e liberdades, pelo menos para uns poucos privilegiados, em
troca daqueles que se retira.(ATWOOD, 2017. p. 362)
O Conto da Aia, romance escrito pela canadense Margaret Atwood, que lida com um futuro
próximo – até demais – do nosso é o primeiro içar de velas do que pretendo
discorrer sobre a pesquisa em educação. Não apenas por ser um dos melhores
livros que li nos últimos tempos, mas principalmente por refletir a função
social do trabalho e a formação intelectual através da prática da descoberta
empírica, além de apontar exatamente o oposto de tal função e formação,O Conto da Aia é uma narrativa sobre a
falta do saber, sobre a negação do ato de ler. A palavra escrita é negada a
todos, apenas uma elite totalitária tem acesso aos livros no romance. As
mulheres são subalternas e objetificadas, a arte não existe mais, qualquer
pessoa que tenha alguma atitude crítica é punida com a morte ou esquecimento,
que daria, aqui, no mesmo. Pois esse universo ficcional parece-me bastante
realístico, quando o nossocontexto é também o de que a ciência e a arte são
encaradas como um produto feito somente para agradar a sociedade.
Trago à tona este romance, como ponto de partida em meu
ensaio, a fim de ilustrar a distopia literária, estética que retrata os modelos
totalitários, uma prospecção frustrante e caótica de futuro, na qual a
humanidade fica à mercê de uma força invisível e avassaladora. Essa força é o
próprio sistema, que se esconde, principalmente, na abolição do conhecimento e do
senso crítico. A distopia é um modelo literário que nos serve de âncora e vela
para sabermos onde estamos e para aonde vamos, sem as camadas lustrosas da
cultura de massa, que nos entorpece.
Vivemos num momento histórico que nos soa como distopia,
quando os museus são fechados, os livros abolidos, as obras de arte rechaçadas,
a educação devassada, e a pesquisa desvalorizada. Isso porque tanto a educação,
quanto a pesquisa e a arte são exatamente o inverso do agrado, do que acomoda;
são as fronteiras sombrias que acompanham tanto a nossa existência, quanto a
nossa construção social e nossas relações com o mundo, servem para incomodar a
humanidade, produzir novos significados, reavaliar valores e estabelecer
paradigmas que nos fazem melhores do que ontem, piores que amanhã. Nosso
potencial de construção de novos saberes e desconstrução de antigos valores é o
que nos faz demasiadamente humanos, para que estejamos sempre elaborando novos paradigmas
e sofisticando nossas atividades.
Como profissional de Letras, pesquiso Literatura e suas
reverberações nos diversos campos das artes e do saber. Entendo que o que
Margaret Atwood nos apresenta em seu O
Conto da Aia é um espelho muitíssimo verossímil do mundo em que vivemos,
hoje: “Nós
parecíamos capazes de escolher naquela época. Éramos uma sociedade que estava
morrendo (...) de um excesso de escolhas”
(ATWOOD, 2017. p. 37). Quando estamos aparatados de
informações, escassos de saberes e nulos de crítica. Mas ainda temos a educação
como instrumento capaz de estabelecer novos caminhos, a fim de nos afastarmos
da realidade de Aia.
Trabalhando com o Ensino Superior há mais de uma década eformando
professores de Letras, Pedagogia, História, Geografia e Matemática minhas
experiências com pesquisa na área de licenciatura perpassam, via de regra, a
formação do professor-leitor, seja este de qual área for. Isso porque a
concepção de ensino atrelado à pesquisa, obrigatoriamente, é uma tarefa de ler,
é um exercício contínuo de produzir, reproduzir, conduzir e reconduzir
discursos para a elaboração de saberes. Concebo a educação como um instrumento
para não nos tornarmos prisioneiros – de nós mesmos, do outro, dos outros – e a
leitura sempre será o primeiro passo para o ato libertador. Dessa maneira, meu
trabalho com licenciaturasé sempre buscar desenvolver não apenas o perfil
crítico,que julgo ser basilar, mas principalmente formar professores capazes de
ler. Não há conhecimento sem leitura, a atividade essencial da pesquisa é o ato
de ler e a relação do professor com o texto deve ser, via de regra, um ato de
desvelamento, de exercício pessoal e de constante questionamento para com o
mundo. Não há como produzir conhecimento sem, antes, questionar o conhecimento
já existente. Não há maneira alguma de se formar professores pesquisadores sem
ser através do questionamento crítico, embasado, de pesquisas já realizadas e
de competência leitora.
Mas voltemos à
distopia que nos cabe: a prática da pesquisa, que deve começar nas primeiras
classes de Educação Infantil, através de métodos exploratórios e empíricos,
para que as crianças tenham suas leituras do mundo associadas às primeiras
leituras das palavrasescritas, queficam subjugadas a projetos pré-prontos, sem
qualquer instrumentalização para que as crianças possam elaborar, colaborar e
explorar o novo. Nossos professores, aparentemente, têm dificuldades em realizar
essa tarefa. Associado a isso, há de pensarmos, também, e talvez, principalmente,
na função social dos espaços de ensino, na forma com que o poder público
compreende a formação de professores e, sobretudo, os aportes financeiros
destinados à educação em nosso país.Sobre o que vislumbro a respeito da
educação e das artes hoje, recorro a um texto que ilustra com propriedade nossa
atual situação:
Eu afirmo,
senhores, que os cortes propostos para o orçamento especial das ciências,
letras e artes são negativos por dois motivos. São insignificantes do ponto de
vista financeiro e danosos sob todos os outros pontos de vista. Insignificantes
do ponto de vista financeiro. Isto é evidente que me sinto constrangido ao
submeter à assembleia o resultado de um cálculo proporcional que fiz. (...)E
qual é o momento escolhido? Aqui está, ao meu ver, o grave erro político do
qual lhes falava no início. Qual é o momento escolhido para colocar em dúvida,
de uma só vez, todas as instituições? O momento no qual elas são mais
necessárias que nunca, o momento no qual, ao invés de limitá-las, seria preciso
ampliá-las e fazê-las crescer. (ORDINE, 2017. p.110-111)
Victor Hugo, em
1848, pronunciou esse eloquente discurso, acerca das objeções às propostas
governamentais de cortar recursos destinados à cultura. Reduzir subsídios é
assumir a falta de importância da educação em nossa sociedade. Estamos, infelizmente, à mercê dos mesmos
frustrantes paradigmas do sistema citado por Victor Hugo, que não apenas ofusca
o potencial da educação e pesquisa, mas alquebra a estrutura educacional, deteriorando
a infraestrutura escolar, desmantelando currículos, enfraquecendo o papel
docente, transformando a escola em um conjunto sombrio de ações burocráticas,
documentais, um misto de espaço carcerário, psicológico, de serviço social e,
quando sobra algum tempo, educacional.
Ao enfrentarmos o processo
educativo além do que o sistema nos impõe, não negando os compromissos
burocráticos, mas reconhecendo a preponderância do aperfeiçoamento constante
que a prática educativa exige, geramos, consequentemente, avalorização da formação
do professor. No entanto, reforço que é preciso ensinar os professores a refletir,
poisas teorias e práticasdevem ser conjugadas. Ser professor é exercer atos
reflexivos e toda reflexão é um ato político, etendo a pesquisa no centro da formação
e da prática docente, os professores tornam-se consumidores mais críticosdo
saber e articuladoresda atividade educativa.
Nossa tarefa de formar professores pesquisadores é um
exercício árduo, ou até mais do que isso; é uma ação quixotesca, ao lutarmos
diariamente contra gigantes disfarçados de moinhos de vento. Como Odisseu,
nosso navio vive à mercê dos mares regidos pelos deuses, no nosso caso, o
sistema neoliberal. Ele nos imputa um plano ágil, colorido, dinâmico, cheio de
informações para serem aplicadas simultaneamente, num espaço-tempo exíguo, sem
a necessidade de problematizar, de analisar, muito menos, de ter competência
leitora para tal. Para isso, bastaria escorregarmos os dedos em aplicativos,
lermos 140 caracteres e já saberíamos de tudo, seríamos os maiores conhecedores
de todas as informações. Nessa perspectiva, tomamos
como princípio educativo a base acadêmica, sua especificidade e condição para
que a pesquisa seja um elo eficaz no exercício permanente na produção de conhecimento
e no aprofundamento da análise de questões relevantes. Mas isso é processual, é
um ato a ser elaborado. Nenhum professor amanhece pesquisador, assim como
ninguém acorda professor. É necessária uma postura investigativa constante, na
qual a teoria torna-se uma ação dinâmica, não basta somente falarmos que todos
os professores são pesquisadores.
Rememoro
Marina Abramovic, performer iugoslava
que considero a mais importante artista de nosso tempo, que trabalha com o
corpo como suporte e instrumento na produção de saberes. Ela institucionalizou
um método artístico conhecido com seu sobrenome, o Método Abramovic. Tal
instrumentalização consiste em vários exercícios, extremamente disciplinados,
para a construção de uma atitude cem por cento presente, tanto da mente, quanto
do corpo. E o método não é apenas para artistas. É um exercício de pesquisa
corporal e mental para, principalmente, as pessoas comuns, a fim de produzirem
novas possibilidades de pensarem o mundo.Utilizandoseu método, Marina desenvolveu
uma performance intitulada A Artista está
presente, que durou 736 horas, com
um público de 850 mil pessoas.
Era uma performance singela,
e nas palavras de Marina, “(...) as regras eram muito simples: cada pessoa
podia sentar diante de mim pelo tempo, breve ou longo, que desejasse. Nós
manteríamos contato pelo olhar. O público não deveria tocar em mim nem falar
comigo” (ABRAMOVIC, 2017. p. 350). Imagino o potencial criativo de um ato tão
delicado, com apenas três suportes: duas cadeiras e uma mesa. Mas a performance
mobilizou, inclusive, neurocientistas, a fim de estudarem as ondas cerebrais da
artista e dos participantes da performance, a natureza das fronteiras de nosso
mundo interior. Mas qual relação entre uma performance realizada em um museu
estadunidense e a formação docente?
Para mim, todas as relações possíveis. Inicialmente,
porque o olhar, o aprimoramento do ver, associado ao sentir, é o primeiro passo
para a construção do saber. E esse “olhar” não se dá apenas com o aparelho
visual, mas com a conexão de todos os sentidos, na profusão de sensações que o
outro nos desperta. Produzir saberes sempre vai passar pelo outro, pelo
interlocutor, por aquele que sempre será capaz de acrescentar algo em nossa
produção de conhecimento. Essa performance também é um exercício conjunto de empirismo
e cognoscibilidade, de descoberta e despertar, ações intrínsecas do
conhecimento.Para olhar o outro, era necessário olhar para si, estabelecer a
conexão dos saberes e sentimentos internos para sentir o outro. Marina disse
que saía, todos os dias, depois de oito horas ininterruptas de performance,
muitíssimo sensibilizada. Porque aprendia, porque conseguia produzir saberes
que não seria capaz de fazer sozinha. Pois foi com o outro, os milhares de
“outros” que se sentaram à frente dela, que aconteceu a produção de
conhecimento.
O Conto da Aia e A artista está presente são
totalmente paradoxais entre si. Enquanto o romance anuncia o fim da liberdade
através do fim da educação, a performance nos nutre com a possibilidade de
sermos livres através do conhecimento e da arte. O exercício de olhar, de se
permitir conectar e vivenciar é o principal passo para a construção de saberes,
para entender os processos necessários para a construção de uma educação
efetiva, em que a formação não seja o mero exercício de informações absorvidas.
Ao contrário dos moldes de educação que nos enforma, Marina ensinou, através da
performance, que somos seres capazes de produzir conhecimento até no silêncio.
E então o que acontece com nossos alunos? O que acontece conosco, que não
conseguimos, aos esgoelarmos em sala, produzir conhecimento? Para onde olhamos,
para onde dirigimos os olhos discentes?
Finalizo, assim, este
ensaio, proclamando que a educação seja, sim, um processo pessoal, para que a
formação docente, através da pesquisa, seja um ato cotidiano, baseado não
apenas nos métodos científicos, mas principalmente, no exercício diário de
pesquisar-se, através de mecanismos mais abrangentes, instintivos, holísticos,
em que a percepção seja valorizada. Que ancoremos em mares profundíssimos, que
de acordo com a qualidade, com a quantidade de leituras transformadas em saber,
que sejamos professores melhores, a fim desermos vela a outras naus, de termos
novos pesquisadores formados através de nossa prática. E principalmente, ao
olharmos nos olhos de nossos alunos, assim como Marina exercitou sua presença
silenciosa, possamos exercitar e aprimorar nossa formação contínua de
educadores, de pesquisadores, mesmo que os deuses influenciem nossas marés e
tentem nos levar ao encalhe em ilhas da infecunda e real distopia.
ABRAMOVIC, Marina. Pelas Paredes.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2017.
ATWOOD, Margaret. O Conto da Aia.
Rio de Janeiro: Rocco, 2017.
ORDINE, Nuccio. A utilidade do
Inútil. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.